segunda-feira, 22 de agosto de 2011

São Leopoldo (RS) e o potencial dos sítios históricos informais

Conjunto histórico não tombado na entrada de São Leopoldo (RS): aguardando valorização. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

O patrimônio cultural não é apenas aquele tombado pelos institutos federal, estadual e municipal. O tombamento apenas declara oficialmente o valor do bem e o comprometimento do poder público em ajudar a mantê-lo. Por falta de vontade política, existem em nossas cidades centenas de potenciais “patrimônios culturais” não oficializados. São edificações isoladas ou mesmo sítios históricos informais que conservam-se minimamente, à revelia dos departamentos e leis preservacionistas.

Inseridos hoje na lógica de mercado, são meros objetos imobiliários aos quais aplica-se a legislação genérica de índices de aproveitamento, taxa de ocupação, etc. A valorização dos imóveis prenuncia o breve desaparecimento destes bens tão significativos.

Para esta breve análise, tomaremos como exemplo a cidade de São Leopoldo (RS). Antiga sede administrativa das colônias alemãs vinculadas ao governo imperial, tem uma história bastante vinculada a imigração. Seu valor simbólico lhe rendeu, ano passado, o título oficial de “Berço da Imigração Alemã”. O traçado ubano da área central da cidade, quase em tabuleiro de xadrez (um pouco irregular), data da fundação do povoamento.
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No entorno do Museu do Trem, um conjunto interessante onde bastariam diretrizes simples de fenestrações pra valorizar o entorno da antiga estação, uma área consagrada na história da cidade. Os dois prédios com as janelas e portas já completamente desfigurados, poderiam receber aberturas adequadas aos anseios do comércio e, ao mesmo tempo, adequadas ao ritmo de fenestrações típico da rua. O exemplar Art Déco em primeiro plano precisaria entrar na lista de preservação, que hoje o ignora. (Foto e montagem: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Percorrendo as ruas da área central de São Leopoldo, percebe-se uma nítida fragmentação da paisagem urbana. Os zoneamentos extremamente permissivos continuam priorizando a verticalização da área central, no traçado tradicional que não comporta o trânsito excessivo trazido pela densificação.

Conjunto sucateado no entorno imediato do Museu do Trem: falta de planejamento integrado. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Trocando em miúdos: a malha urbana continua a mesma dos tempos coloniais, onde recebia orientações do código de posturas e estava adequada aos pequenos casarios e sobrados. Mas nestes mesmos espaços, o próprio plano diretor incentiva, através do seu desplanejamento urbano, a ocupação massiva e verticalizada.

A cidade tradicional desaparece, devorada pelo caos. A mera especulação financeira é aplicada sem restrições e sem sensatez. Definitivamente, não se está construindo uma cidade para o futuro. Constrói-se a decadência e a obsolência do amanhã, através desta preocupação apenas com o hoje, aplicando modelos de desenvolvimento ultrapassados.

Claro conflito de escalas em São Leopoldo. O patrimônio "ficou sobrando". (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Nota-se o mesmo processo que ocorre em grande parte das nossas cidades: o mercado imobiliário, hoje importante pilar econômico, precisa girar, e trabalha constantemente na criação e re-criação de demandas e de necessidades. É insuflada na população a necessidade da troca constante de casas e apartamentos. A justificativa mais comum é a da insegurança - que curiosamente, é uma consequência criada justamente por esse processo. A população não apenas muda-se de uma residência para um apartamento (ou condomínio fechado), mas muda-se constantemente também de um apartamento ao outro, novo e recém-construído, como uma forma de reafirmação do status social. O apartamento antigo passa para as classes inferiores, as residências, passam à obsolência e por estarem no início deste ciclo, entram na fila para a demolição.

O modelo atual de preservação

O modelo “desesperado” adotado pelo poder público de São Leopoldo há alguns anos atrás, foi decretar uma listagem simplificada de “indicação para preservação”. Este documento selecionou certas edificações por seu valor e visava garantir sua continuidade. Foi uma medida louvável para preservar emergencialmente as casas listadas, enquanto não havia tempo hábil e recursos para contratação de um Inventário, como recomenda a legislação estadual.
Desconhecemos os critérios que nortearam esta seleção, e por isso não entraremos neste mérito. Mas, por termos percebido a não inclusão de uma série de edificações interessantes, consideramos importante para uma futura revisão e oficialização na forma de Inventário do Patrimônio Cultural, a consideração de que o valor de um bem histórico vai além da sua qualidade arquitetônica, ou de ter sido palco de episódios históricos representativos. A valoração também advém de uma série de outros valores, como o técnico (construção com técnicas construtivas peculiares), paisagístico (formação de conjuntos ou paisagens urbanas juntamente com outros prédios ou entorno natural), funcional (edificação simbólica de um uso consagrado), entre outros.

Durante a visita com o Amigos do Morro do Espelho, encontramos este bem relacionado na lista como indicado para preservação, completamente desfigurado. (foto: Jorge Luís Stocker Jr.)

Por termos encontrado algumas edificações listadas já completamente desfiguradas ou demolidas, é possível concluir sem medo que esta política de preservação já foi ultrapassada há muito tempo pelas artimanhas do mercado imobiliário. E pior, ela entra em conflito direto com o próprio Plano Diretor da cidade. Ao permitir construções com altíssimos IA e TO em ruas onde situam-se grande parte dos bens indicados para preservação, a própria administração pública sugere a obsolência dos bens que julga adequado preservar, desvalorizando a ambientação do seu entorno e acirrando a especulação do próprio lote onde se situam. O processo acaba na inevitável demolição do bem histórico, pois tira o sentido de sua preservação e causa a obsolência de seu uso.

O potencial ainda existente
Entrada da cidade, visual tradicional marcada pela torre neogótica. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

A erradicação da cidade tradicional entra em conflito direto com as perspectivas locais de tornar-se referência cultural, atrativo turístico integrante da Rota Romântica e de fato “um berço da colonização alemã”. Apesar deste inglório processo em andamento, ainda é possível encontrar resquícios da cidade tradicional.

Ao longo das ruas Lindolfo Collor, José Bonifácio e Marquês do Herval, por exemplo, encontramos uma série de conjuntos ainda harmônicos em suas escalas e usos. Na entrada da cidade, o conjunto que será agredido pelo novo centro administrativo praticamente define São Leopoldo há mais de cem anos - a qualidade do conjunto é tanta que parece tratar-se de um dos poucos espaços históricos capazes de gerar imaginabilidade, segundo critérios de Kevin Lynch (pois evocam uma imagem forte). Com o correto mapeamento destas áreas remanescentes, e com a aplicação de critérios adequados de preservação, poderiam se tornar áreas modelo para a cidade. A delimitação de sítios históricos potencializaria a reconstrução da identidade leopoldense (ou manutenção dos resquícios dela).

Encontro de bens históricos na Rua Lindolfo Collor. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)


Não se trata de congelar a cidade, mas de planejá-la corretamente. Os critérios são simples e amplamente adotadas em legislações municipais de sítios históricos. Pode-se, por exemplo, classificar as edificações em níveis de preservação:
P1 – Nível de preservação máximo. Edificações indicadas para tombamento, portadoras de valor histórico e cultural inestimáveis. São referências na paisagem urbana, ícones de determinadas épocas, ou edificações que encontram-se bastante íntegras em sua originalidade.
P2 – Nível de preservação médio. Edificações com certo nível excepcionalidade, mas passíveis de reciclagem e readequação para novos usos, condicionados à manutenção de suas fachadas, escala urbana e volumetria.
P3 – Nível de preservação baixo. Edificações isoladas com pouco conteúdo a ser preservado, ou edificações que complementam ou formam conjuntos com outros bens históricos. São passíveis de completa readequação, inclusive com modificações nas fachadas, contanto que sejam respeitados critérios de volumetria, fenestrações e harmonia com o restante do conjunto ou com a paisagem urbana circundante.
P4 – Edificações passíveis de demolição. Edificações com certo conteúdo histórico já bastante desfiguradas e sucateadas. Podem ser demolidas, contanto que a nova edificação seja construída dentro de critérios de adequação ao entorno.
Casa demolida, em frente ao conjunto da foto anterior. Não estava indicada para preservação, ao contrário das outras três esquinas que lhe fazem frente e que compunham um conjunto diferenciado. Poderia ser indicada ao nível de preservação P3, garantindo o uso com retorno econômico. (foto: Elis Regina Berndt/2008)
No seu lugar, o vazio urbano de um posto de combustíveis - causando a desvalorização do conjunto indicado para preservação e a fragmentação da percepção do espaço. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Os bens remanescentes precisam ser vistos na forma de conjuntos, e não isoladamente. A qualidade destes espaços advém da ocupação harmônica dos lotes, a relação harmônica de cheios e vazios tanto dos lotes (com a sequência de construções igualmente construídas no alinhamento) quanto das fenestrações (sequência verticalizada de portas e janelas, elementos particulares de cada prédio que formam ‘eco’ no conjunto). Estes espaços tradicionais ainda subsistem tranquilos, aprazíveis para morar, caminhar e vivenciar o espaço urbano. Simples iniciativas podem qualificar ainda mais estes espaços e torná-los atrativos também ao turismo, sem promover gentrificação ou criação de falsos ambientes.


Casa de 1900, provavelmente ainda mais antiga antes da construção da platibanda: representativa de um modelo típico e de uma fase do código de posturas da cidade. Poderia retomar sua dignidade com um mínimo de movimentação e sem falso histórico. A casa fica em frente a entrada do Museu do Trem. (Foto e desenho: Jorge Luís Stocker Jr/2011)

A população ainda se apropria do espaço nas áreas tradicionais. Será isso possível com a densificação absurda? Futebol de rua na José Bonifácio. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008).

É possível ver pelas fotos que a valorização destes poucos conjuntos restantes já tarda em ser efetivada. Caso não sejam adequadamente valorizados a tempo, podem acabar desaparecendo, deixando uma lacuna irrecuperável na cidade. Como diz Leonardo Benevolo, os centros históricos

“(...)não nos interessam porque são belos ou históricos, mas porque indicam uma possível transformação futura de toda cidade em que vivemos” (A Cidade e o Arquiteto, p. 71)

A ambiência ainda inalterada de sítio histórico na Rua José Bonifácio, pode se perder se o conjunto de casas indicadas para preservação não for considerada como um todo. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

A partir do momento em que a cidade se torna genérica e a população, indiferente a sua própria forma; a partir do momento em que a insegurança toma conta das ruas (pois a população está trancafiada em seus edifícios e condomínios intra-muros), a cidade torna-se obsoleta em todos os sentidos. Não traz qualidade de vida para a população e nada representa. Estes espaços históricos são incompatíveis com a legislação genérica dos planos diretores, como diz Leonardo Benevolo:
O centro histórico foge, em princípio, ao mecanismo vigente: formou-se num passado mais longínquo e muitas vezes é o único elemento aceitável do assentamento existente, já pronto para ser incluído na futura cidade moderna.”
(A Cidade e o Arquiteto, p. 77)

Parece ser o caso de São Leopoldo: o Plano Diretor atual sugere modelos ultrapassadíssimos de ocupação da malha urbana. Há precedentes por todo o mundo que comprovam a obsolência deste desenvolvimento especulativo, pois só traz decadência a longo prazo e aumenta os custos públicos para a futura requalificação de áreas, constante readequação das pistas de rolamento ao trânsito crescente, combate a insegurança e depredação do meio urbano. Não se trata de impedir a construção de edifícios em altura, mas de zonear áreas adequadas a estes.
Os sítios históricos (hoje, ainda informais e fragmentados) parecem ser o único elemento da área central apto a participar da cidade do futuro, pois é provido de sentido, valor e qualidades. Basta enxergar o potencial e valorizar enquanto há tempo.

Jorge Luís Stocker Jr.

Leia também
- Visitando nossa cidade - contruções históricas - Blog Amigos do Morro do Espelho
- Visitando uma cidade escondida - pós visita - Blog Amigos do Morro do Espelho

5 comentários:

  1. Muito bom teu artigo Jorge. Essa área do Centro de São Leopoldo é bastante interessante, porém realmente não recebe o devido tratamento. Passei a ter maior contato com a área no último ano, e me espanto descobrir que no local onde está sendo contruído o posto de gasolina na São Joaquim existia uma casa daquela proporção. Sem essa informação já considero o posto ali um grande problema para o conjunto arquitetônico e caráter da rua. Infelizmente São Leopoldo parece não possuir diretrizes objetivando a preservação desses espaços. Para finalizar, a falta de informação da história e da preservação nos moradores/proprietários dessas casas é praticamente nula - a casa de 1900 recebeu uma pintura essa semana, num verde fosforescente...

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  2. Primeiramente parabenizar a matéria, realmente o assunto não recebe a atenção necessária, sei disso, pois como o Rodrigo citou acima, sou proprietária da casa com a platibanda de 1900, pintada de verde fosforecente! O telhado desabou, a estrutura está completamente comprometida (foi retirada a janela da esquina pois a parede que na foto aparece rebocada estava prestes a desabar). Porém a prefeitura não autoriza a demolição do local por pertencer ao sítio histórico e uma reforma como sabem é cara, ainda mais
    mantendo a fachada histórica! Os procedimentos estão sendo tomados para que a área receba a atenção necessária... mas o processo é lento e burocrático, podemos deduzir que o "fosforescente" que o colega cita acima seja apenas mais uma forma dos proprietarios de chamar atenção, quem sabe?! Portanto não creio que haja exatamente uma falta de informação da parte dos proprietários, só quem está por dentro do processo para saber como funciona!

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  3. Olá gostaria de saber a historia de uma casa antiga na Rua José Bonifácio em São Leopoldo, ela é de 1890, está na faixada na parte de cima, meu e-mail é mauroulbra@yahoo.com.br

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  4. Oi Jorge parabéns pelo artigo estou desenvolvendo o meu TFG justamente em cima do tema que você abordou e gostaria de conversar mais com você sobre o assunto se possével entre em contato comigo! Meu email é carineberger@uol.com.br obrigada

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  5. Oi Jorge parabéns pelo artigo, estou desenvolvendo meu TFG em cima do tema que você abordou e gostaria de conversar mais com você a respeito, se puder entrar em contato comigo meu email é carine.guga@bol.com.br

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