sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Moinhos morre (e Porto Alegre também): O fim das casas da rua Luciana de Abreu

Alvo de uma ação judicial que completou mais de dez anos, um conjunto de prédios históricos na Rua Luciana de Abreu, bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre, foi hoje (23/12/2016) completamente demolido pela construtora proprietária. Campo de batalha simbólico para a sociedade civil em defesa do patrimônio cultural no Sul do País, a derrota traz em si aprendizados necessários para os próximos passos.

 Fonte:http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2016/12/demolicoes-na-rua-luciana-de-abreu-mortes-no-transito-e-a-pressao-na-assembleia-os-assuntos-do-dia-8879470.html

Antes de tudo, é importante destacar: No momento em que viraram "pauta", as casas da Luciana de Abreu não estavam submetidas a nenhuma política de preservação oficial. Haviam sido renegadas no inventário, tampouco gozavam de tombamento ou outra forma de proteção. Tratava-se, claramente, de patrimônio cultural informal, o que infelizmente é o status da parte majoritária do legado cultural de nossas cidades.

Estas casas preconizaram, lá atrás, uma tendência recentemente notada no campo da preservação: o questionamento da legitimidade das instituições oficiais por parte das comunidades, que buscam protagonismo nas políticas de preservação. Mobilizações da sociedade civil tem se somado pelos quatro cantos do País, demandando a preservação do patrimônio cultural independentemente das Prefeituras, órgãos de preservação e conselhos dos mais diversos afirmarem que determinados imóveis não tem valor patrimonial.

Esta tendência tem sido chamada pelo docente da UFMG, Leonardo Castriota, de "Patrimônio insurgente" e cristalizou-se recentemente em pautas de grande expressão popular, como a defesa do Cais Estelita no Recife. Pois bem, no longínquo 2003, a atuação em conjunto do Ministério Público Estadual e da Associação Moinhos Vive já caminhavam no sentido de preservar um conjunto de imóveis "renegado".

Nos 13 anos da ação civil, muitas decisões favoráveis a um lado e outro, numa sucessão de pequenas vitórias e fracassos da preservação do patrimônio cultural. Pode-se dizer que a ação reconfigurou a própria forma de atuação do MP neste tema no Estado, uma vez que a ação foi evoluindo e acumulando conhecimentos e equívocos sucessivos.

Em resumo, deve-se atentar ao fato de que delegar a deliberação sobre o valor cultural de um imóvel a esfera judicial é quase sempre uma péssima perspectiva. O campo do patrimônio cultural trata de valores culturais que, em alguns pontos, dialogam com subjetividades dificilmente contempladas na simplificação positivista do judiciário. Em resumo: não existe 8 ou 80, "é" ou "não é" quando se fala de patrimônio cultural, pois tudo depende da metodologia adotada e da abordagem.

Não faltaram oportunidades desta contradição ser exposta radicalmente no curso da ação: laudos técnicos de professores de ensino superior alegando a falta de valores culturais, com utilização de algumas metodologias muito antigas utilizada pelo IPHAN antes mesmo da Constituição de 1988. Também, audiências judiciais com integrantes do próprio COMPHAC do Município mostraram profissionais dispostos a comprovar a falta de valor cultural das edificações.



Tratava-se, no fim das contas, de um conjunto de edificações muito simples, que fugiam do senso comum dos critérios de "excepcionalidade" e portanto, apresentavam como maior atrativo o valor histórico (no sentido da memória social comunitária) e paisagístico. Entretanto, na sanha de enquadrar as edificações numa escala mais simples e típica do positivismo judiciário, passou-se a defender que a autoria das casas fosse do Arq. Theo Wierderspahn e especular-se grandes precedentes históricos para o conjunto, numa flexibilização tal que prejudicou bastante a abordagem mais séria do valor cultural dos imóveis.

Por outro lado, é bastante notório que tanto os poderes públicos (Município e Estado) quanto o Judiciário mostraram-se completamente impermeáveis aos anseios da população, uma vez que o próprio histórico de movimentos, atos públicos e eventos realizados pela preservação dos imóveis já constituíam, por si só, no valor cultural que embasaria até mesmo um tombamento, considerando-se além dos valores já referidos o valor afetivo. Também as ditas esferas de participação - em especial o COMPHAC - preferiram se abster de intervir no caso, aguardando a decisão judicial para então tomar qualquer atitude.

No esteio de 13 anos de uma ação tumultuada, cheia de contradições de todos os tipos, o Judiciário decide finalmente pelo réu. A derrota é significativa, considerando a quantidade de outras pautas e movimentações que tiveram como ponto de partida a experiência do Moinhos Vive. Entretanto, não pode ser entendida como um precedente para futuras demolições, uma vez que com a experiência adquirida, precisamos todos urgentemente desviar esta rota fadada ao fracasso.

Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/porto-alegre/noticia/2016/12/casaroes-da-rua-luciana-de-abreu-sao-demolidos-em-porto-alegre-8875449.html#showNoticia=Rm1DXixZJEk4NTc5NzU4ODMzNjEyNjQwMjU2KDwuMzc1OTk4MzkxNzQ3NzA4NjU3MGtRQjY1MzY2MjU5ODU5MTQxNDI3MjBudW52QGY+fFJrYWZkQjlWZEQ=

Em especial, chamaria atenção para a necessidade de ações mais preventivas: ocupação do COMPHAC por entidades e cidadãos com real interesse em promover e proteger o patrimônio cultural, conforme as premissas constitucionais, com real  vinculação técnica ou afetiva com a área; formatação através de um TAC - Termo de Ajuste de Conduta entre Prefeitura e MP, da efetivação dos inventários de patrimônio cultural dos bairros que ainda carecem na cidade, identificando de antemão as edificações de valor cultural antes que se tornem novas demandas judiciais ou perdas definitivas, e a construção dos instrumentos necessários para viabilizar a preservação, considerando contrapartidas possíveis aos proprietários. Acima de tudo, que se perca o "medo de gente" e se chame a população para o diálogo direto e franco sobre o tema, pois apenas o envolvimento crescente da comunidade como um todo pode contrapor forças capazes de subjugar todas as instituições.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Ponte de pedra: não é polêmica, é falta de participação



A grande repercussão dos questionamentos envolvendo a obra de restauração da Ponte de Pedra deve-se menos aos supostos equívocos técnicos da obra, e mais aos nítidos equívocos da política de preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre.

 Fonte imagem: Clic RBS
 
A Constituição Federal coloca a comunidade ao lado dos poderes públicos, como co-responsáveis pela preservação. Presume-se a população não como espectadora passiva, contemplada em seus direitos com a inauguração de obras com as quais deve se contentar. A população deve ter espaço para ser provocadora e partícipe de todo o processo.

O projeto de restauração da Ponte de Pedra, desde a motivação até sua execução, foi gestado em escritórios e gabinetes. Não houve nem um esboço de processo participativo, educativo ou de envolvimento. Uma restauração deveria ser pretexto para reatar ou reforçar os laços entre a população e o bem cultural em que se intervém. Inclusive, formando os agentes comunitários que poderão atuar no dia-a-dia, zelando por sua conservação.

Quando ao contrário, se fecha tapumes ao redor da obra e se nega o diálogo ou informação, o resultado simples é a comunidade apreensiva com o que está se fazendo lá dentro. E isso deve ser interpretado como um bom sinal, de que ao contrário do que versa o senso comum, a comunidade se importa com os prédios históricos. Sendo patrimônio cultural é identidade de um povo, como gostamos de repetir, não podemos imaginar que este assista apático a uma cirurgia de grande gravidade sendo executada à sua revelia.

Entender uma obra de restauro como um fim em si, e não como parte de um processo, jé uma atitude que já mostrou-se equivocada em inúmeras outras oportunidades. Quando o poder público apenas investe em uma restauração, em poucos meses o local encontra-se novamente danificado e vandalizado e do investimento feito, pouco ou nada se aproveita. Preserva-se a materialidade sem preocupar-se com o seu significado social.

Há, certamente, respostas técnicas às dúvidas e críticas que foram expostas por leigos. Boa parte destes mau entendidos poderiam ter sido resolvidos simplesmente com informações periódicas sobre o andamento das obras, publicadas na internet. Quanto a qualidade da restauração, acredito que só seja possível discutir tendo informações que não são no momento públicas. Reforçando que há subjetividades no tema que tornam qualquer decisão passível de discussão e questionamento.

Nós, "do lado de fora do tapume", no momento podemos apenas desejar que o bem seja preservado da melhor forma possível - e que esse processo vertical da política de patrimônio se reverta e se horizontalize no futuro...

 Foto: Jorge Nunes